quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Homens "cortados ao meio"

Um texto interessantíssimo de Manuel António Pina, jornalista, poeta e escritor português.

"Sempre gostei de Matemática. Nos primeiros anos após a instrução primária, a Matemática, juntamente com o Português, era a minha disciplina preferida, e ambas aquelas onde obtinha sempre melhores classificações. Estou convencido de que o meu amor pela Matemática e pelo Português (e, depois, no Complementar — hoje 10.º e 11.º anos — pela Literatura) se deveu principalmente aos professores que tive.
Julgo que seja uma experiência comum, a de, enquanto estudantes, amarmos as disciplinas de cujos professores gostamos. É minha convicção, fundada na experiência, que o amor é o maior e mais generoso de todos os veículos de comunicação.
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Podia dizer — e digo — que a Matemática é uma disciplina, se não uma aventura, emocionante, mas todas as áreas do saber o são, muito particularmente hoje, em que é notório que todas, em especial as chamadas Ciências da Natureza, vivem (sempre assim aconteceu, mas hoje acontece talvez de forma mais arrebatadora, porque mais mediatizada) em «estado de fronteira», forçando permanentemente os seus limites, num movimento em espiral para dentro (muitas vezes para dentro umas das outras) no sentido da simplificação e da convergência, o que, no entanto, conduz a problemas cada vez mais difíceis.
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É de um desastre que falamos quando falamos das dificuldades de relacionamento dos nossos jovens com a linguagem matemática (o mesmo que acontece com idêntica dificuldade com a Língua, que tem raízes na exclusão da "linguagem da Língua", o Latim, dos programas escolares).
Um amigo meu, professor de uma Faculdade de Arquitectura, gasta habitualmente as primeiras aulas do curso a… ensinar a tabuada aos seus alunos e a combater o estúpido preconceito que o Secundário neles instilou contra a memorização, como se o conhecimento fosse possível sem memorização.
Sendo embora um observador distante, e apenas curioso, do fenómeno do ensino, julgo que, por razões de bom senso, tanto a Matemática como o Latim, como também a Filosofia, deveriam fazer obrigatoriamente parte dos curricula escolares durante todo o Secundário.
Ora, há uns anos (porque o facilitismo "simplex" não é invenção dos actuais responsáveis do Ministério da Educação), até a Filosofia se quis excluir, ou limitar a uma situação residual, do ensino. O resultado está à vista: estamos a construir uma sociedade de homens, como diz Drummond, «cortados ao meio». "
In jornal Público de 24 de Junho de 2009

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